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HISTÓRIA DA CIÊNCIA, CRÍTICA E PANDEMIA: uma discussão necessária

Discutir a ciência e sua história, no contexto do que viemos vivendo nos últimos anos, sem dúvidas, é um dos temas mais importantes e contemporâneos para nossa sociedade. A importância e a atualidade do debate estão colocadas na circunstância de que, historicamente, desde o final do século XVII, a ciência se tornou um dos elementos fundamentais da nossa vida e da forma como a nossa sociedade se estruturou.



Dessa maneira, a atual situação de pandemia em que estamos enredados e o fortalecimento de leituras negacionistas sobre uma série de assuntos, dentre eles o da própria ciência, exigem de nós conhecimentos e posicionamentos enfáticos. É nesse contexto e nessa direção que recentemente foi lançado o livro “A Filosofia Natural e Experimental na Inglaterra do século XVIII: um diálogo com a historiografia acerca da ideia de ‘Ciência’ na ‘Era das Luzes’”, de autoria de Luiz Carlos Soares.


A intima relação entre a temática abordada no livro e o nosso presente é destacada pelo próprio autor na apresentação da obra. Ao tratar do conteúdo geral do livro e os seus motivos, Soares escreve: “neste contexto pandêmico, surge mais uma grande oportunidade para se fazer uma profunda discussão sobre a natureza do conhecimento científico, sua abrangência, seus limites e possibilidades” (SOARES, 2020, p. 10). Por sua vez, lembra o autor, essa conversa só tem sentido se não perdermos de vista o “caráter histórico” do conhecimento científico. Em outras palavras, a circunstância de que ele nem sempre foi e nem sempre será o mesmo em todo lugar, bem como a percepção de que a ciência não produz verdades absolutas e totalmente imparciais.


Na apresentação, o autor conta que o livro foi escrito no contexto do isolamento provocado pela pandemia da covid-19 e que ele é resultado de uma “demorada pesquisa”, cujo objetivo inicial era a produção de outra obra, a qual está em elaboração e terá o título “Newtonianos no Mercado” (SOARES, 2020, p. 10). Na verdade, o “A Filosofia Natural e Experimental na Inglaterra do século XVIII”, inicialmente deveria compor o primeiro capítulo do livro que está em produção. Todavia, devido as dimensões que tomou e a conjuntura problemática que atravessamos, o capítulo, nos termos de Soares, acabou por dar origem a “um pequeno livro”.


Primeiramente, é importante destacar que de “pequeno” o livro não tem nada, tanto em termos de sua dimensão como de seus conteúdos. São mais de duzentas páginas de muito conhecimento e leituras, condensadas em análises muito profícuas e importantes, seja em termos de debater a ciência e sua história ou de pensarmos as bases científicas do mundo contemporâneo. Além disso, imiscuídas nessas mais de duzentas páginas estão muitas horas de leitura, anotações, traduções e reflexões, as quais não devem ser desconsideradas. Logo, o adjetivo “pequeno” não dá conta de expressar o que efetivamente o livro é.


Soares não nos apresenta uma pesquisa pautada em fontes primárias e também não é seu objetivo desenvolver análises de algum assunto inédito na área da História da Ciência. Parece que esta tarefa será realizada no “Newtonianos no Mercado” e em outros trabalhos que o autor está a desenvolver e aos quais faz referência em diferentes momentos da narrativa. Assim, o seu “pequeno livro” tem como objetivo central apresentar “diversas questões historiográficas relativas à ideia de ‘Ciência’ no século XVIII, debatidas por autores que, em sua grande maioria, são praticamente desconhecidos no Brasil”. Entre outras coisas, porque seus livros e artigos “foram publicados predominantemente em língua inglesa e não existem traduções disponíveis em língua portuguesa” (SOARES, 2020, p. 11).


Esta característica não tira o mérito do trabalho de Soares, muito menos nega o fato de que o seu “pequeno livro” é uma obra altamente produtiva para que futuras pesquisas inovadoras sejam desenvolvidas. O livro do professor Luiz Carlos Soares é de uma riqueza historiográfica ímpar. Seu principal mérito está em apresentar aos leitores de língua portuguesa um conjunto de discussões, conceitos e de debates historiográficos sobre a história da ciência que muitos de nós ainda não conhece profundamente. Qualidade que ganha em potência ao considerarmos que os professores e estudantes brasileiros dos mais diferentes níveis (fundamental, médio, superior e pós-graduação), da área de história ou de outras ciências, encontram enormes dificuldades para ler e adquirir literatura estrangeira.


Dessa forma, o trabalho de Soares também cumpre um papel social importante, pois atua na perspectiva de difundir e divulgar os aprendizados que adquiriu e os conhecimentos que vem produzindo a partir de seus estudos e das leituras que fez. As análises produzidas pelo autor proporcionam condições para que seus leitores entrem em contato com os principais e mais contemporâneos debates realizados no contexto da historiografia anglo-saxã sobre o tema da ciência e fazem isto sem deixar de levar em consideração outras tradições historiográficas (francesa e estadunidense, por exemplo). O foco principal da obra é tratar sobre a chamada “Filosofia Natural e Experimental” e sobre as relações possíveis entre este ramo do saber – que contemporaneamente chamamos de ciência – no desenvolvimento da Revolução Industrial e seus impactos na constituição do mundo ocidental; das suas matrizes sociais, econômicas, políticas e culturais.


A obra é composta por oito capítulos e em cada um deles o autor busca apresentar alguns dos principais aspectos abordados na produção historiográfica que é foco de suas análises, mas sempre cuidando para não perder de vista o seu objeto principal, isto é, a ideia de “Ciência” na Inglaterra da “Era das Luzes”. Aprendemos muito ao ler o livro e ao conhecer essa historiografia, especialmente em termos de pensarmos algumas questões que dizem respeito as nossas próprias pesquisas. Em realidade, é impossível avançar na leitura sem que nossas mentes tracem paralelos com a situação brasileira ou com os estudos que realizamos. Nesse sentido, a obra de Soares poderá contribuir muito diretamente no desenvolvimento dos estudos sobre a história da ciência no Brasil. Seja para atualizar e revistar debates, ou indicar abordagens, temas e problemas que ainda não receberam atenção dedicada aqui.


Dessa forma, se tivesse que elencar alguns assuntos que considero importantes no contexto do livro, diria que o primeiro deles encontra-se na perspicácia do autor em demonstrar os avanços proporcionados pela historiografia que é objeto de suas análises no campo da História das Ciências, as rupturas e inovações que promoveram. Uma delas diz respeito ao debate sobre a interconexão entre o desenvolvimento da Revolução Industrial e o do conhecimento científico produzido na Inglaterra dos séculos XVII e XVIII.


Segundo as reflexões de Soares, a importância desta relação, até bem pouco tempo atrás, tendia a ser relativizada. Porém, pesquisas mais recentes têm demonstrado que existiu uma íntima conexão entre esses dois processos (desenvolvimento da ciência e Revolução Industrial). Em consequência, as análises pautadas na ideia de que os desenvolvimentos tecnológicos que desaguaram na Revolução Industrial foram mais obra de técnicos do que de cientistas propriamente ditos, não dão conta de captar profundamente os matizes do processo como um todo. Do mesmo modo, a historiografia que é objeto das análises de Soares, vem demonstrando que as leituras que se pautam na ideia de que o conhecimento científico produzido à época pouco interferiu nos caminhos percorridos pela Revolução Industrial, têm dificultado a compreensão, tanto dos significados da ciência no período, como da própria Revolução Industrial e dos processos que ela desencadeou.


Para tratar dessas questões, Luiz Carlos Soares, iluminado pela historiografia que lhe serve de referência, chama atenção para o “caráter público” que a ciência adotou no contexto da Inglaterra do século XVIII e o quanto tal característica está relacionada às mudanças sociais, econômicas e políticas que o país viveu na época. Fatores que garantiram a Inglaterra, comparativamente a outras nações europeias, certo protagonismo e pioneirismo no desenvolvimento e na difusão do conhecimento científico. Fenômeno que, por sua vez, implicou na Revolução Industrial e também ajuda a entender os motivos pelos quais ela encontrou lugar de realização inicial na Inglaterra.


Esta nova historiografia também destaca o papel desempenhado pelos chamados “professores independentes e/ou itinerantes de Filosofia Natural e Experimental” na difusão e na constituição de uma “audiência pública” para ciência. Fatores que, somados a outros mais, foram importantes para a constituição de uma espécie de “mentalidade científica” partilhada em diferentes contextos sociais da Inglaterra no período. Estes professores independentes e/ou itinerantes, tinham por inspiração principal as concepções de Isaac Newton e juntamente com outros personagens (professores universitários, estudiosos, industriais, engenheiros, políticos, membros de sociedades como a Royal Society, etc.) formavam a chamada “ilustração Newtoniana”, a qual teve grande influência nas transformações que marcaram a Inglaterra do século XVIII. Por seu turno, todo esse processo foi acompanhado pela constituição de novos saberes e valores, assim como de novos padrões de consumo e lazer, os quais tinham a ciência como referência ou eram consequência das descobertas científicas.


Isaac Newton (1643-1727)

Outro destaque está na polissemia que esses processos adotaram e no quanto eles estavam inter-relacionados entre si, sendo que o desenvolvimento de uma de suas esferas implicava diretamente no desenvolvimento e na mudança das outras. Trata-se de um mundo muito complexo, no qual paulatinamente a ciência foi se constituindo em algo presente no cotidiano das pessoas. Além disso, estas mudanças produziram condições para a constituição de uma espécie de “economia do conhecimento”, que se espraiou por diferentes lugares e nações na época e, com as devidas ressemantizações, continua a nos acompanhar até os dias de hoje. Atrelado a isto tudo, também estava imbricada a constituição de um mercado de consumo da ciência e de seus produtos, o qual abria espaço para a realização de carreiras e formações cientificas capazes de proporcionar ascensão social, especialmente aos integrantes das classes médias inglesas que, nos conta Soares, conheceram um desenvolvimento todo especial na Inglaterra do século XVIII.

Assim, a ciência, ou melhor, a então chamada “filosofia natural e experimental”, de uma forma de conhecimento restrito as aristocracias no século XVII, ao longo dos séculos XVIII e XIX, alcança públicos mais amplos, especialmente entre as classes médias, e influi diretamente nos processos que levam a Revolução Industrial e nas suas consequências, as quais, vale ressaltar, não são poucas em termos da formatação do mundo moderno. Fenômenos que foram potencializados pela constituição e expansão de um mercado consumidor de produtos destinados a fazer ciência e experimentos científicos, de produtos tecnologicamente processados em equipamentos e máquinas criados com base no conhecimento científico, assim como de lugares onde estes produtos e conhecimentos eram “vendidos” e divulgados (cafés, sociedades particulares, escolas, associações, clubes, universidades, etc.).


Estes espaços que garantiam a possibilidade para que algumas pessoas pudessem viver de praticar e ensinar ciência como professores independentes e/ou itinerantes, seja dando cursos em diferentes lugares da Inglaterra ou vendendo seus livros, foram de grande importância à época. Neles, atuavam homens que conseguiam mobilizar amplas plateias e que, inspirados pela “ilustração Newtoniana”, influenciaram muito diretamente na difusão e na aceitação da ciência como forma de conhecer e intervir no mundo. Em suma, na constituição e no espraiamento daquilo que a literatura especializada chama de “mentalidade científica”.


Nessa direção, se tivesse que provocativamente pensar estes homens a partir de uma concepção teórica que muito debateu e vem debatendo sobre o papel dos intelectuais na organização da sociedade – a de Antônio Gramsci (1988) – poderíamos dizer que os tais “professores independentes e/ou itinerantes” eram como que uma espécie de “intelectuais orgânicos” da ciência na época. Nesta lógica interpretativa, cumpriram papel importante no sentido de construir meios para tornar a visão de mundo própria da “filosofia natural e experimental” a visão de todo mundo. Porém, não estavam isolados na tarefa, pois nesse desenho igualmente se encaixam outros personagens de não menos importância, tais como os engenheiros civis, os professores universitários, os “industriais ilustrados”, o próprio Estado e outros tantos protagonistas mais que são citados e analisados por Soares.


Quanto aos “industriais ilustrados” (em geral donos de indústrias), na literatura mais tradicional, usualmente são tratados como técnicos que proporcionaram o desenvolvimento industrial sem serem necessariamente cientistas. Contudo, a nova historiografia sobre a História da Ciência que é objeto das análises de Soares, tem avançado muito na direção de mostrar que estes “técnicos”, sem o conhecimento científico, sem conhecerem e apostarem na ciência, pouco teriam interferido nas transformações que marcaram a época. Parece ser lógico, pois sua condição de técnicos necessariamente estava alicerçada em conhecimentos cientificamente produzidos. Por sua vez, as tecnologias que inventaram e desenvolveram, também proporcionavam meios para o desenvolvimento e aprimoramento da ciência. Em suma, analisar estas duas esferas (técnica e ciência) separadamente acaba por retirar parte do dinamismo do processo como um todo.


De maneira geral, estes são alguns dos assuntos debatidos ao longo do “Filosofia Natural e Experimental na Inglaterra do século XVIII”. Há muitos outros, contudo, não será possível apresentá-los aqui e isso não os torna menos valorosos. Um tema que considero ser interessante, apenas para rapidamente apresentar um exemplo, diz respeito aos impactos da Revolução Industrial no Brasil. Sabemos o quanto os processos por ela desencadeados provocaram transformações na realidade brasileira do período, mas pouco discutimos sobre o quanto o conhecimento cientificamente produzido, inclusive nas regiões coloniais, esteve diretamente implicado nessas mudanças. Essa parece ser uma questão bastante frutífera para conhecermos uma faceta ainda pouco estudada das consequências da Revolução Industrial e da Ciência no Brasil.


Ao acompanhar a história da ciência, perceberemos que muita coisa, desde o século XVIII até o presente, mudou e o livro de Soares é enfático em demonstrar isso, ou seja, que a ciência não é estática e que suas descobertas não são absolutamente imparciais. Entre outras mudanças que aconteceram, é possível verificar que a ideia inicial de uma “ciência pública” e “útil”, voltada ao desenvolvimento da humanidade como um todo perdeu muito de seu espaço. Como demonstra Soares, esta concepção, esteve muito presente no universo do pensamento iluminista, seja de vertente radical ou moderada, e encontrou certa realização, mesmo que com alguns limites, na Inglaterra e em alguns outros contextos da Europa do século XVIII. Entretanto, ao longo do tempo ela perdeu e/ou vem perdendo seu lugar para uma concepção de ciência altamente pragmática e mercadológica.


Esta característica, por seu turno, nos remete novamente ao século XVIII, a chamada “filosofia natural e experimental”, a “ilustração Newtoniana”, aos “industriais ilustrados”, aos “professores independentes e/ou itinerantes”, em suma, ao contexto inglês como um todo e a expansão dos processos que aconteceram na Inglaterra para outras terras e continentes. Isso envolve levar em consideração as pessoas, grupos e classes sociais envolvidas em todo esse processo, os conflitos que marcaram o período, bem como as transformações políticas, econômicas e sociais que aconteceram no mundo como um todo, especialmente no pós Revolução Industrial.


Politicamente falando devemos lembrar que os principais nomes do pensamento ilustrado inglês, dentre eles Isaac Newton, compunham o campo do iluminismo que Jonathan Israel (2009 e 2013) chama de “moderado”. Eram homens que estavam diretamente implicados na produção de novos conhecimentos e formas de interpretação do mundo, que tinham certa radicalidade em relação a alguns assuntos que formavam a pauta de discussão no período em que viveram, mas que eram politicamente comprometidos com os status quo. No geral, propunham algumas transformações para a sociedade como um todo, mas desde que elas não implicassem em mudanças sociais profundas, principalmente no sentido de questionar a ordem social vigente. Neste sentido, nunca é demais lembrar que John Locke (1999), outro pensador muito importante no contexto da ilustração inglesa e que, assim como Newton de quem era contemporâneo, teve grande importância política e científica na época, no capítulo sobre a propriedade do seu Segundo tratado sobre o Governo, encontrava formas para justificar a propriedade escrava.

John Lock ( 1632-1704)

Enfim e para não me delongar demais, dentre muitas outras, estas são algumas reflexões que a leitura do livro do professor Luiz Carlos Soares proporciona. Vale destacar a importância delas no contexto em que vivemos e a sua relevância em apontar caminhos, questionamentos e problemas para que a pesquisa no Brasil, especialmente sobre a história da ciência, avance e ganhe novos e mais amplos públicos.


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